O PASSADO E O FUTURO
No decurso do ano de 2010, encerraram-se três décadas sobre um momento fronteira na vida da Cinemateca.
Em 14 de Julho de 1980, com a projecção de “Os Crimes” de Diogo Alves de João Tavares e de “Os Filhos da Casa Mourisca” de Pallu, foi inaugurada a primeira sala própria da Cinemateca, que nesse mesmo ano iniciou o seu percurso enquanto entidade autónoma e mudou o nome de Nacional para Portuguesa.
Não considerando a fundação, que, de resto, como se sabe, não teve um momento de concretização prática bem definido, dividida que foi por vários actos decorridos ao longo da década de cinquenta, sob o chapéu da lei de 1948, não terá certamente havido outra fronteira tão significativa em toda a história daquela casa.
Finalmente, num mesmo ano, a Cinemateca tornava-se algo mais do que uma secção de outro organismo, ganhava uma sede própria e era dotada de uma sala exclusivamente dedicada à sua função exibidora.
Com a abertura da sala, e com o que desde então foi uma actividade de projecção diária, praticamente ininterrupta até aos dias de hoje, uma actividade que não foi sequer suspensa quando se recuperou a sala a seguir ao fogo de 1981, ou quando se reergueu todo o espaço anexo do palacete-sede, agora com duas salas, marcou-se uma separação entre um “antes” e um “depois”, que, de resto, em vários aspectos, pode até ter representado um maior salto do que aquele que tinha acontecido com o arranque da actividade pública nos anos cinquenta.
Se é verdade que, como acreditamos, a Cinemateca foi desde a origem um elemento decisivo na manutenção e no desenvolvimento de uma cultura cinematográfica em Portugal, o grau com que isso se verificou na “fase Barata Salgueiro” mede-se numa escala que não tem equiparação possível no período anterior.
Querendo a Cinemateca assinalar essa fronteira neste início do novo ano de 2011, a mesma não pretende, contudo, olhar para trás.
Contudo, ao longo destes trinta anos, a Cinemateca manteve uma enorme fidelidade àquele que foi o projecto lançado nesse ano da autonomia, depois enriquecido com a criação do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) e com toda a redefinição orgânica levada a cabo já na década de noventa.
Passo a passo, a Cinemateca foi erguendo um modelo museográfico mais completo e, naturalmente, também se verificou uma mudança. Mas, no mesmo período, em torno da organização as coisas mudaram mais.
O mundo cinematográfico em que a Cinemateca começou a inserir-se há três décadas pouco tem a ver com aquele que nos rodeia hoje. Não referindo sequer as mutações sofridas no parque de salas, nos hábitos de assistência do público generalista ou na natureza da distribuição, bastaria pensar nas transformações da cinefilia tradicional, na nova relação com o património, hoje muito marcada pelas novas tecnologias, pelo acesso individual e pela visão fragmentada e, ainda, nas mudanças ocorridas no ensino ou na investigação, para reparar nessa enormíssima alteração de contexto.
Donde, num jeito de balanço, julgou-se que, sobretudo, há que erguer perguntas sobre o seu lugar nesse contexto, e fazê-lo no âmbito mais alargado possível.
Como pode a Cinemateca cumprir hoje o papel que é o seu?
Que pontes estabelecer, que novos diálogos desenvolver para que esse projecto resista e se desenvolva?
Ao olhar para uma história de que se orgulha, a Cinemateca fá-lo colocando-se ela própria em discussão.
Ao longo de todo o mês de Janeiro de 2011, procedeu-se, então, a este questionamento.
Foi feito em três vertentes, ou seja, um grande Ciclo de Filmes, as “Cartas Brancas” e “Sessões Especiais”. O Ciclo de filmes que enquadra a programação surgiu com um ponto de interrogação no fim e tem apenas como tema essa pergunta:
“O que é programar uma cinemateca hoje?”
Adiante se explicará um mínimo sobre o processo que levou à escolha e alinhamento destes títulos.
Mas explicar o processo não é responder à pergunta, porque, repetimos, o Ciclo desenvolvido foi a forma de perguntar.
Em relação às cinco “Cartas Brancas”, o princípio que esteve por detrás delas foi sobretudo uma aposta geracional: desafiar, no exterior da Cinemateca, Realizadores e Investigadores que, sendo herdeiros da cinefilia mais tradicional, estão já hoje, portanto, para além dela.
Finalmente, dentro da série de oito sessões especiais programadas, há que referir à cabeça a presença de dois nomes especialíssimos de toda a cultura cinematográfica mundial nos dias de hoje:
“Peter von Bagh” e “Peter Kubelka”
Nomes maiores dessa cultura, ambos participaram já em actividades anteriores da Cinemateca e ambos voltam agora para ajudar a marcar o momento e a erguer a reflexão havida.
As restantes sessões consistiram em colóquios através dos quais, área por área, foi aberto o diálogo com interlocutores externos sobre vários aspectos da cultura de cinema actual e o lugar na mesma da Cinemateca.
1. O novo perfil da investigação histórica de cinema a actividade de iniciação à imagem em movimento;
2. O ensino de cinema;
3. A problemática da descentralização;
4. O papel específico da Cinemateca em relação ao cinema português;
5. A herança deixada pelo enorme e gigantesco trabalho realizado na Cinemateca por João Bénard da Costa, na sua vertente de programador.
Em 1980, a autonomização da Cinemateca foi ainda levada a cabo pelo fundador da mesma, Dr. Manuel Félix Ribeiro, que assim pôde participar na concretização do que tinha sido o seu sonho maior.
Passado o testemunho de direcção a Luís de Pina e deste a João Bénard da Costa, a Cinemateca pôde, com a competência e a paixão de todos eles, beneficiar de uma coerência e de uma continuidade de esforço que muito explicam aquilo que, repetimos, é um passado que é um orgulho para a Organização.
Mas, quando se evoca em particular a história da sala Luís de Pina e do papel dela na cultura cinematográfica do país durante estes anos, é imperioso que nos detenhamos por um momento na análise da marca pessoal por si deixada desde que assumiu a liderança da programação nesse ano de 1980, então como Subdirector.
O Colóquio a que o título faz referência versou o tema daquela herança – algo de muito grande que cabe à Cinemateca honrar, ou seja, desenvolver, ou ainda, mais uma vez, interrogar.
Fonte: Cinemateca Portuguesa