Um Português nas Origens
2015-02-24
Texto: Carlos A Henriques
Isto de atribuir a paternidade da invenção da Televisão a uma dada figura não é tarefa fácil dado que várias foram as entidades envolvidas em todo o mundo, cada uma com a sua solução, numa primeira fase electromecânica, para finalmente se ter optado, por razões óbvias, pelo conceito 100% electrónico.
Há, assim, reivindicações vindas dos EUA, Grã Bretanha, França, Alemanha, Itália, Japão, e de outros entre os quais se encontra Portugal.
Iremos analisar uma-a-uma as várias propostas apresentadas, assim como um pequeno percurso histórico dos intervenientes no respectivo desenvolvimento, dando a primazia, para já, ao português Adriano de Paiva, ele mesmo envolvido em tão importante “descoberta”.
Contudo, naquele tempo os meios de comunicação não eram tão céleres como os actuais, assim como a existência da Internet nem para o visionário mais optimista era expectável, pelo que havia um grande desconhecimento da parte dos vários envolvidos em desenvolvimentos de matérias comuns.
Qual o Envolvimento de Adriano de Paiva na Descoberta da Televisão?
Em 1878, mais precisamente no mês de Março, publicou numa revista científica e literária que se editava em Coimbra com a designação “O Instituto”, um artigo muito avançado para a época com o título “A Telefonia, a Telegrafia e a Telescopia”, no qual se dava, pela primeira vez, uma aplicação concreta do selénio, elemento químico fotocondutor, na conversão da luz em corrente eléctrica, pontapé de saída para o que veio a chamar-se mais tarde de Televisão.
Dada a importância deste trabalho, vamos reproduzi-lo na integra, mantendo a forma como foi escrita pelo Autor:
“A telephonia, a telegraphia e a telescopia”
A actividade scientífica do nosso paiz, pouco sensivel de ordinario, foi nos ultimos mezes do anno proximo passado desusadamente excitada, em presença do moderno descobrimento do telephone magneto-electrico do professor, o sr. Graham Bell, natural de Edimburgo, e recentemente naturalisado americano. O nosso publico interessou-se por modo raramente visto logo nos primeiros ensaios que com o novo apparelho foram feitos. Executados por alguns dos mais distinctos membros do nosso corpo telegraphico, estes ensaios revestiram como que um caracter official; el-rei houve por bem consentir que algumas das experiencias se executassem na sua presença, dignando-se elle proprio tomar parte n’ellas; e os jornaes noticiosos, espalhando por toda a parte a nova dos resultados colhidos, e incumbindo-se de indicar as multiplices aplicações a que se prestava o novo invento, conseguiram despertar a curiosidade, até nas localidades que mais indifferentes parecem sempre ás conquistas da sciencia. Ao mesmo tempo, graças á extrema simplicidade do novo instrumento, começava elle a ser construido pelos nossos artistas; a sua venda annunciava-se por preços excessivamente modicos; e mais que uma concessão de privilegio para o seu aperfeiçoamento era requerida aos poderes públicos.
O notavel enthusiasmo, produzido entre nós pela descoberta do professor americano, não póde porem ser taxado de excessivo, se o compararmos com o que despertou nos paizes mais adiantados, onde os mais distinctos homens de sciencia a consideraram como a ultima palavra da telegraphia electrica. Foi assim que em Inglaterra o sr. W Thompson, no congresso da Royal Britannic Association, realisado em Glasgow em setembro de 1876, ao dar conta do telephone que vira na exposição de Philadelphia, exclamava, debaixo d’uma impressão ainda recente: - «Esta maravilha, senhores, é certamente a maior da telegraphia electrica. Eu ouvi phrases inteiras que o meu colega, o sr. Watson, pronunciava na outra extremidade do palacio de Philadelphia. A sua voz chegava até mim clara e distincta, de modo a poder imaginá-lo apenas alguns passos.» Foi ainda assim que em França, o sr. Breguet, em um excellente artigo, intitulado Os telegraphos telephonicos, não hesitou em dizer claramente: - «A descoberta da telephonia veio preencher a unica lacuna que ainda existia na correspondencia rápida do telegrapho.»
Em um grande numero de artigos, que tivemos occasião de ler sobre este assumpto, encontrámos sempre o mesmo modo de o considerar. O telephone tem sido comparado exclusivamente ao telegrapho. É um telegrapho sem pilha, e que realisa um grande progresso, por quanto, em vez de transportar ao longe a palavra sob a fórma escripta, a transmite na fórma oral. D’este modo é frequentemente designado pela expressão telegrapho fallante, na verdade um tanto impropria, se attendermos á etymologia.
Pela nossa parte, sem combatermos e existencia de analogias incontestaveis entre o telephone de Bell e o telegrapho electrico, foi sempre opinião nossa individual, desde que começámos a estudar esta questão, que entre o capitulo da physica, a que póde caber a denominação de telephonia e a telegraphia existem distincções essenciaes, que se verificam egualmente entre estes dois ramos da sciencia e o capitulo da optica que se occupa da telescopia. E como este modo de ver nos levou a dirigir a attenção para um estudo que, até ha muito pouco, suppunhamos inteiramente novo, permitta-se-nos que desenvolvamos mais as nossas idèias.
Quando meditamos um pouco sobre o modo por que é estabelecida a communicação do homem com a natureza que o cerca, dois dentre os orgãos dos sentidos parece revelarem-nos desde logo uma importancia superior. São o olho e o ouvido; - os dois orgãos cujas funcções originaram dois dos mais momentosos ramos da physica, a optica e a acustica. E sendo estes orgãos essencialmente destinados para a observação a distancia, nada deve surprehender-nos que logo que d’elles começou a servir-se, o homem se esforçasse por artificialmente lhes augmentar o alcance. D’aqui na sua fórma mais rudimentar, a primeira telescopia, e tambem a primeira telephonia, ou, antes, um ramo particular d’ella a que poderiamos chamar telacustica (de - ouvir ao longe.)
Para as relações do homem a homem a natureza destina especialmente orgãos que permittem as articulações vocaes. Origina-se assim a palavra; e esta consegue revestir mais tarde uma fórma utilissima fixando-se na escripta. A voz, porém, não sendo audivel além duma distancia determinada, e o transporte de escripta exigindo um correio, sempre moroso no desempenho do seu mister, tornava-se necessário dar á voz maior alcance, e poder, na sua falta, sustentar ao longe uma conversação por meio de signaes convencionados. D’aqui um outro ramo da telephonia, que denominaremos telelogia, e d’aqui tambem a primeira telegraphia.
Vê-se pois, ao que nos parece, que a telephonia comprehende dois ramos diversos por essencia; em um o que se pretende é augmentar a potencia auditiva, no outro a potencia vocal. O primeiro homem, que escutou attento, collocando a mão posteriormente á orelha, realizou um telephone rudimentar do primeiro genero, como um do segundo foi realisado por aquele que, para fallar ao longe, acurvou as mãos em deredór dos labios, ou se serviu d’um porta-voz.
Se porém d’esta phase primitiva passamos a outras ulteriores encontramos apparelhos que podem reunir em si as funcções de telephones dos dois generos. Tal é o tubo acustico, que ainda hoje póde empregar-se com vantagem até á distancia de 150 metros, e tal é tambem o moderno telefone Bell, o qual, se por um lado póde dizer-se que transmitte as vibrações vocaes de um dos interlocutores até juncto do ouvido do outro, póde por outro lado considerar-se como realisando o transporte do pavilhão do ouvido até ao ponto em que o som se produz. Concebe-se até como é possivel dar a este pavilhão artificial tal grão de sensibilidade, que do centro d’uma cidade populosa se possa, por meio d’elle, escutar o canto das aves em uma floresta distante de muitas legoas; resultado maravilhoso, mas que devemos considerar fatal, desde que, no intuito de conseguil-o, se pensou uma vez no emprego das correntes electricas. O que portanto entendemos dever saudar principalmente no telephone Belll, bem como nos ensaios que o precederam, não é a descoberta de novos telegraphos, os chamados telegraphos fallantes; é sim uma applicação, nunca antes feita, da electricidade, é a creação da telephonia electrica.
Desde que as considerações precedentes se desenharam claras ao nosso espirito, para logo nos quiz parecer que uma nova descoberta scientifica se annunciava para breve; seria a applicação da electricidade á telescopia, ou a creação da telescopia electrica.
Não se nos antolhava impossivel a sua realisação. Do mesmo modo que no telephone electrico o pavilhão do ouvido é, por assim dizer, transportado ao ponto em que o som se produz, e ahi, recolhendo as vibrações em uma lamina consegue transformal-as em correntes electricas, que vão recompor o som no apparelho receptor , - o que tudo, senão existissem as resistencias interiores, tanto maiores quanto maior a distancia a percorrer, deveria effectuar-se sem perda apparente de força viva, - tal se nos afigurava dever ser o mechanismo no telescópio que anteviamos. Uma camara escura, collocada no ponto que houvesse de ser sujeito ás observações, representaria, por assim dizer, a camara ocular. Sobre uma placa, situada no fundo d’esta camara iria desenhar-se a imagem dos objectos exteriores, com as suas côres respectivas e accidentes particulares de iluminação, affectando assim diversamente as diversas regiões da placa. Tornava-se por tanto apenas necessario descobrir o meio de operar a transformação por nenhuma fórma impossivel, d’esta energia, absorvida pela placa, em correntes electricas, que em seguida recompozessem a imagem.
A importancia da descoberta d’um instrumento de tal ordem manifesta-se com demasiada evidencia. Comtudo não é talvez inutil advertir que esse telescópio electrico, quando realisado preencheria uma lacuna que a telescopia actual, a despeito de todos os seus progressos jámais poderia pensar em fazer desapparecer. E, de facto, salta aos olhos a impotencia da telescopia catadioptrica, quando se reflecte que, sendo possível a observação astronomica a distancias quasi infinitas, a lei da propagação rectilinea da luz, tanto directa como reflectida, ou refractada em meios homogeneos, se oppõe a que possamos observar um objecto qualquer á superficie da terra, embora a distancias incomparavelmente menores, uma vez que se ache abaixo do horizonte apparente do observador, o qual, como é evidente, delimita no espaço o logar geometrico de todos os pontos observaveis. Com o novo telescopio, porém, desappareceria tal obstaculo; transformado em corrente electrica, o movimento luminoso percorreria docilmente o caminho que nos aprouvesse dar ao fio destinado a conduzil-o; e de um ponto do globo terrestre seria possivel devassar este em toda a sua extensão.
Não podemos deixar de confessar que nos causava notavel estranheza, em face da importancia manifesta d’estas reflexões a da circumstancia de serem ellas uma naturalissima consequencia da descoberta dos telephones electricos, que nada que se lhes assimilasse nos tivesse apparecido em nenhum dos muitos artigos que haviamos lido sobre a materia. Por tal motivo, fomos levados a pensar no modo pratico de resolver a questão que nos preoccupava, e chegámos a imaginar algumas experiencias. Communicámos desde logo as nossas idéias a alguns amigos e collegas; e havendo-nos elles incitado a publicar estas considerações, com o fim de chamar a attenção dos practicos para a resolução de um problema de tal momento, começavamos a escrever um artigo sobre o assumpto, quando nos veio á mão uma publicação recentissima, e ahi tivemos a satisfação de encontrar, pela vez primeira, alguma cousa sobre o instrumento, que pelas razões expostas denominaramos telescópio electrico, e que ali se designa pela expressão equivalente de telectroscopio. Vimos então que aquillo de que não fallavam os artigos que consultaramos, aliás de physicos distinctos, não escapara ao já festejado professor, o sr. G. Bell. a quem a humanidade ficará sendo devedora de mais esta maravilha.
«O telectroscopio, lê-se no referido livro, é um apparelho baseado, como o telephone, sobre a transmissão electrica. Compõe-se de duas camaras collocadas uma no ponto de partida outra no ponto de chegada. Estas camaras são ligadas entre si por fios metalicos convenientemente combinados. A parede anterior e interna da camara de partida é eriçada de fios imperceptiveis cuja extremidade apparente forma, por sua reunião, uma superficie plana. Se collocarmos diante desta superficie plana um objecto qualquer, e se as vibrações luminosas, correspondentes ás particularidades da fórma e das côres d’este objecto, depois recebidas por cada um dos fios condutores forem transmittidas a uma corrente electrica, reproduzir-se-hão identicamente na extremidade d’estes fios. Os jornaes de Boston affirmam que as experiencias feitas naquella cidade, foram coroadas de excellente resultado, mas torna-se necessario aguardar descripções exactas do aparelho para acreditar este annuncio.»
Pela nossa parte nada acrescentariamos sobre a materia, se não vissemos escriptas as ultimas palavras do trecho que acabamos de transcrever. Á vista d’ellas porém diremos que as experiencias que tencionávamos realizar, e que ainda procuraremos levar a cabo, consistiam em ensaiar o emprego do selenio como placa sensivel da camara escura do telectroscopio. Este corpo, com effeito, goza de uma notavel propriedade, cuja descoberta é de data muito recente. Quando interposto em um circuito electrico que passa em um galvanometro, faz desviar sensivelmente a agulha d’este, todas as vezes que um fasciculo luminoso vem incidir sobre elle, e demais este desvio é diverso sob a influencia das radiações de diferente côr. É o que mostram os seguintes algarismos, que indicam desvios do galvanometro:
Ultra-violeta, 139; violeta 148; azul, 158; amarello, 178; vermelho, 188; vermelho, 188; ultra-vermelho, 180.
Estes resultados foram obtidos pelo sr. dr. Werner Siemens, de Berlim, o qual, preparando pequenas laminas circulares de selenio, resfriadas depois de experimentarem uma temperatura de 210°, o que lhes dava uma sensibilidade extrema, chegou a construir um photometro d’uma grandissima sensibilidade, bem como um curioso instrumento, uma especie de olho artificial, de que seu irmão, o sr. William Siemens, fez uma curiosa descripção em Londres, em um dos saraus da Royal Society.
Muito desejaramos que o selenio, applicado ao fim que acabamos de indicar, podesse produzir o desejado effeito, se não nas nossas, em outras mais habeis mãos. Seria para nós um dia do maior jubilo aquelle em que lograssemos ver o telephone electrico aperfeiçoado e o telectroscopio funccionando. Pelo que respeita ao telephone, cremos, com o sr. Breguet, que não dará tudo o que ha d’elle a esperar, emquanto uma pilha lhe não for adaptada, emquanto o telephone voltaico não vier substituir o actual telephone magneto-electrico. Neste a força viva que tudo produz é sómente a que o próprio experimentador põe em acção pelo trabalho vocal; podemos comparal-o a um veiculo, cujo motor fosse o simplesmente o esforço da propria pessoa transportada. Não assim em um telephone voltaico, no qual a pilha seria um verdadeiro reservatorio de força, que poderia convenientemente aproveitar-se do mesmo modo que é facil dar a velocidade desejada a uma locomotiva, pois que isso se póde dispôr de um enorme excesso de força motriz. E estas mesmas razões nos parece estarem indicando que são tambem as correntes voltaicas aquelas que mais convirão á futura telectroscopia.
Com estes dois maravilhosos instrumentos, fixo em um posto do globo, o homem estenderá a todo elle as faculdades visual e auditiva. A ubiquidade deixará de ser uma utopia para tornar-se perfeita realidade.
Então, por toda a parte á superficie da terra, se cruzarão fios condutores, encarregados de importantissima missão; serão elles os ductos mysteriosos que conduzirão, até ao observador, as impressões recebidas pelos orgãos artificiaes, que o genio humano soube transportar a todas as distancias. E, do mesmo modo que a complexidade dos filamentos nervosos póde dar a idèia da perfeição superior de um animal, esses filamentos mettallicos, nervos de uma outra natureza, testemunharão por sem duvida o grau de civilização do grande organismo que se chama
- a humanidade.
Porto, 20 de Fevereiro, 1878
DR. ADRIANO DE PAIVA
Lente de physica na Academia Polytechnica
Este artigo foi publicado na edição de Março de 1978 da Revista Científica e Literária “O Instituto”, XXIV ano-Segunda série-nº9. Coimbra. Imprensa da Universidade.