Os Deuses Devem Estar Loucos
O Éden faz parte do quarteto de salas de Cinema no eixo da Av. da Liberdade/Restauradores, a que se deve juntar o S. Jorge, o Tivoli e o Condes, cujas recordações da nossa juventude estão ali marcadas em doses de grande porte, devendo-se juntar às mesmas a canção do Paulo Carvalho “Sábado à Tarde”, a qual serve de argamassa através da música, do poema e da interpretação notável do citado, a este grupo de salas.
Para nós no Éden, para além da sua história, beleza arquitectónica e local de visionamento de um elevado número de filmes, há uma passagem marcante no domingo de Páscoa de 1966, época em que os Beatles continuavam, a nível mundial, a impor as suas músicas, assim como as modas de vestir e calçar, às quais os jovens aderiam por mais extravagantes que fossem, como era o caso das sapatos/botas de tacão alto e aperto acentuado no peito dos pés.
Após acesso ao 2ª balcão, através de escadas exteriores ao edifício, entretanto desaparecidas, eis que nos preparávamos para uma sessão em cheio de Cinema, sendo esta constituída por um bloco informativo, o famigerado “O Mundo Em Notícias”, do qual faziam parte as actualidades mundiais, aí com mais de dois meses de existência dos factos ocorridos, com comentários em português brasileiro, a que se seguia um documentário, finalizando esta primeira parte, de uma série de três, com um filme de desenhos animados, sendo esta estrutura do programa, reflectida num flyier entregue pelo arrumador, caso este fosse contemplado com uma suposta gorjeta.
Pelo facto de estarmos na Páscoa, oferecemos a nós próprios um par dos já citados sapatos à Beatles, os quais, de acordo com a moda, deviam ser muito justos ao pé, o que provocava, após uso prolongado, uma terrível dor, à qual não resistimos, razão que nos levou a descalçá-los enquanto assistíamos, sempre sentados, às três partes do programa, não havendo direito a idas à casa de banho ou ao bar do Cinema durante os dois intervalos que se seguiram.
Entretanto, chegou-se ao final da 3ª parte, ao seja, ao final do filme principal, o que implicou a operação de calçar de novo os sapatos/botas de tacão alto para abandonarmos a sala, só que os pés, uma vez libertados daquela retenção forçada durante a ida para o Éden, incharam de tal modo, o que implicou termos que sair para a Praça dos Restauradores com os ditos na mão.
Não há palavras que descrevam a cara do taxista quando nos viu vestidos com o rigor que a Páscoa à época “obrigava”, mas com os sapatos na mão a solicitar os seus serviços.
O nascimento desta centenária sala de espectáculos, na Praça dos Restauradores, no nº 17, em Lisboa, concretamente no campo do Teatro e do Cinema, remonta ao início do século XX, ou seja, a 1902.
Após várias vicissitudes e tentativas de construir no local uma sala emblemática na chamada “baixa” lisboeta, nasceu, finalmente, a 25 de Setembro de 1914 o Éden Teatro, mais tarde convertido em sala de Cinema (1918).
Esta versão do Éden, com uma fachada de Estilo Clássico, foi o resultado de um projecto elaborado pelo cenógrafo Augusto Pina, dispondo, inicialmente, 2.000 lugares, mas, face a problemas no âmbito da segurança, este número teve que ser reduzido para 1.622, acabando por ser encerrado, em 1928, por não garantir as condições de segurança que, segundo a Inspecção Geral de Espectáculos, um espaço com estas características deveria comportar.
Face às profundas alterações a que a estrutura do edifício tinha que ser submetida e ao custo daí resultante, o proprietário do edifício, o Conde José Sucena, optou pela destruição do mesmo e a construção no espaço de um novo edifício.
É aqui que entra em campo o Arq. Cassiano Branco, um modernista com características estilísticas “Art Déco” (Estilo 1925), o qual apresentou, sucessivamente, três projectos, o primeiro em 1929 através da empresa Éden-Teatro, o segundo em 1930, no qual se pretendia dar uma continuidade de estilo com a fachada do edifício vizinho, optando-se no terceiro por um Estilo Modernista baseado no sucessão de semi-cilindros feitos à base de mármore e vidro, não havendo, contudo, da parte do proprietário luz verde para a sua concretização.
A construção do novo Cine-Teatro Éden, da responsabilidade dos Engenheiros Mariano Fernandes e Tavares Cardoso, realizou-se em 1933, com base no projecto do Arq. Carlos Florêncio Dias, tendo o Escultor Leopoldo de Almeida emprestado a sua arte aos baixos relevos presentes na fachada, havendo, contudo, fortes traços dos projectos anteriores, até porque o Arq. Carlos Dias era um dos colaboradores do atelier de Cassiano Branco.
Dado que se pretendia dotar o espaço com as melhores condições acústicas que a tecnologia e os materiais de então podiam proporcionar, foi contratado, para o efeito, o perito francês Gustave Lyon, tendo este desenvolvido um trabalho considerado notável para a época.
O Éden passou a contar com 1.394 lugares sentados, divididos por uma plateia, camarotes centrais e laterais, um primeiro e um segundo balcão, a cuja inauguração marcou presença o Presidente da República de então, Marechal Carmona, a qual ocorreu no dia 1 de Abril de 1937, tendo sido levado à cena, na ocasião, a opereta (revista) Bocage, contando o cartaz com Estêvão Amarante, Maria Paula e Maria das Neves, entre outros, tendo alcançado na época um retumbante sucesso.
Como nota sobre as características do palco o mesmo apresentava uma boca de cena de 12m e uma profundidade de 15m.
Foram, ainda, representadas mais três revistas, respectivamente “Chuva de Mulheres” (1937), com libreto original de Lopo Lauer, Almeida Amaral, Vasco Sequeira e Frederico de Brito (Britinho), “Fanfarra” (1937/8), com libreto de Lopo Lauer, Almeida Amaral, Fernando Ávila e Santos Braga e Dominó (de 1937 a 1945), com libreto de Pereira Coelho e Alberto Barbosa, tendo-se, de seguida convertido, definitivamente, em sala de Cinema.
A cabina de projecção, com os seus 7m de largura, albergava equipamento de projecção e sonorização da marca holandesa Philips.
Muitos foram os filmes de 1ª grandeza como “Os Dez Mandamentos” de Cecil B. DeMille (reposição) , “Os Três Mosqueteiros” de Richard Lester, “Tubarão” de Steven Spielberg (1975), “Amor em Acapulco”, com Elvis Presley, “Hércules o Conquistador, assim como os portugueses “Fátima, Terra de Fé”, de Jorge Brum do Canto, “O Miúdo da Bica”, com Fernando Farinha, “Kilas o Mau da Fita” de José Fonseca e Costa (1980), entre dezenas de outros, sendo a sala de Cinema preferida das distribuidoras portuguesas no período pós-guerra.
O Éden fechou as suas portas à projecção cinematográfica no dia 31 de Dezembro de 1989, com o filme “Os Deuses Devem Estar Loucos-II”, cujo título remete para a decisão tomada sobre a continuidade daquele que foi um dos mais emblemáticos cinemas lisboetas de todos os tempos.
Foi, ainda, o cenário onde Win Wenders rodou o seu filme “Until The End of The World”, ou seja, mais um título de acordo com a história deste espaço.
O edifício foi comprado pelo Grupo Amorim, tendo este assumido o compromisso no acto de compra de manter aquele espaço na esfera cultural, tendo o mesmo resultado na exposição temporária dedicada àquele que lhe fez três projectos, intitulada “Cassiano Branco e o Éden”, estando esta patente de Novembro de 1990 a Janeiro de 1991.
Perante o desafio arquitectónico e histórico do espaço Éden, o mesmo foi considerado, em 1996, pelo IPPAR (Instituto Português do Património ARquitectónico) como Imóvel de Interesse Público.
Os novos proprietários do Éden procederam à recuperação do edifício introduzindo no mesmo os elementos dos novos ventos de mudança através do talento e arte dos Arquitectos Frederico Valsassina e George Pencreach, tendo sido o mesmo ocupado pela Megastore Virgin e mais tarde pelo VIP Executive Suites Éden e por uma Loja do Cidadão.
Fontes:
Bibliográficas: Livro de Manuel Félix Ribeiro “Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa 1896-1939” (Edição Cinemateca Nacional-1978); Blogue “Restos de Colecção” e blogue “Cinemas do Paraíso”.
Fotográficas: Arquivo Fotográfica Municipal de Lisboa, Arquivo Fotográfico da Fundação Calouste Gulbenkian e Colorize Media Learning.