A nossa juventude é marcada por pequenas aventuras de uma relevância tal, no período da sua vivência, que o nosso subconsciente as regista para sempre, ao ponto de nos obrigar, passadas algumas décadas, o regresso a determinados locais, ao visionamento de certas imagens ou à escuta de determinadas músicas, sem que, contudo, a intensidade dos momentos remotos esteja ao nível a que as lembranças no remetem.
Esta introdução vem a propósito, entre outras razões, devido à experiência vivida pelo autor desta crónica numa das mais emblemáticas avenidas de Lisboa, concretamente a Avenida da Liberdade, não só pela carga histórica que esta encerra, nem pela beleza dos seus jardins e lojas, mas, fundamentalmente, pela existência nos idos anos 60, do século passado, de um conjunto de salas de Cinema que alegravam os fins-de-semana dos lisboetas, entre os quais se destacam o Eden, Condes, Tivoli e o São Jorge, isto sem contar com o Politeama, o Odeon e o Olímpia.
Pelas muitas horas de puro deleite ali vivido, vamos dar destaque, nas linhas que se seguem, ao jovem ancião que dá pelo nome de “Cinema São Jorge”.
O PATRONO
Mas, quem foi, de facto, o mártir São Jorge, o mesmo que emprestou o seu nome ao maravilhoso castelo que se encontra ali tão perto?
Militar romano de família cristã, originário da Capadócia, São Jorge alistou-se na guarda pessoal do Imperador Diocleciano (284 a 305 d.C.), a quem serviu lealmente. Quando as perseguições aos cristãos se tornaram violentas, decidiu assumir a sua fé e distribuiu os seus bens pelos pobres.
Diocleciano ordenou que fosse torturado, mas ele resistiu a todos os suplícios sem nunca amaldiçoar Cristo.
Antes de morrer às mãos dos carrascos, decapitado, tinha feito vários milagres e a sua coragem já tinha inspirado a conversão de centenas de pessoas.
Até hoje perdura o mito de São Jorge e do Dragão. A Igreja refuta que alguma vez tenha havido um dragão, que seria não mais do que a metáfora da maldade, personificada em Diocleciano.
Desenho da planta original
O CINEMA
Quando, a 24 de Fevereiro de 1950, o Cinema São Jorge abriu as suas portas ao público, Lisboa reagiu com espanto. Era, na época, a maior sala de espectáculos do País, com capacidade para 1.827 pessoas (913 na plateia, 914 nos três balcões), mas, também, um espaço equipado com inovações tecnológicas inéditas entre nós, nomeadamente ar condicionado e um sistema de aspiração interna que permitia eliminar as poeiras do ambiente.
Construído com capitais luso-britânicos, no período de apenas um ano (entre 1949 e 1950), era dotado de um palco, dois foyers, sala de projecção, instalações para a Administração e salas de apoio técnico. Dispunha de uma excelente acústica e proporcionava aos visitantes um cenário de grande beleza e conforto, ou seja, Lisboa reconhecia, no Cinema São Jorge, uma obra superior, quer pela qualidade dos materiais quer pela modernidade das linhas, facto que valeu ao seu arquitecto, Fernando Silva, o Prémio Municipal de Arquitectura em 1951 (Valmor).
Planta do balcão de 1950
No período de lançamento do São Jorge, actuava, como atracção extra durante os intervalos dos filmes, o escocês Gerald Shaw, o qual tocava música num órgão eléctrico, ele próprio uma obra de arte, que se elevava do palco, para surpresa dos espectadores.
Planta da plateia de 1950
Inicialmente propriedade da empresa inglesa Rank Filmes, daí a razão de ser ali a estreia dos filmes do “007-James Bond”, que o deteve até 1985, altura em que passou a ser administrado pela Paramount e pela Universal, o Cinema São Jorge sofreu obras profundas em 1982, para obedecer a uma nova lógica de rentabilização dos espaços vocacionados para a exibição cinematográfica. Uma lógica que não era estritamente nacional, mas correspondia a um movimento internacional e generalizado.
Deixou de ter, por tal facto, uma única sala e foi dividido em três salas independentes.
Em 2000 foi adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa, evitando-se, deste modo, que a mesma viesse a engrossar a lista de Cinemas em extinção, como já tinha acontecido com o Cinema Monumental, Eden, Alvalade, Condes e Império.
Em 2003, a empresa municipal EGEAC (Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural) passou a assegurar a gestão do São Jorge, o qual, depois de um período de encerramento para obras de beneficiação, reabriu ao público em Maio de 2006, procurando, desde então, reaproximar a população a um equipamento que, para além da sua história, se vocaciona para o futuro e procura preencher expectativas díspares de um público contemporâneo formado e exigente, não se limitando à exibição cinematográfica dado passar a ser um espaço polivalente.
Desde Conferências, Palestras, Concertos de Música Clássica, Música Ligeira e Alternativa, Festivais de Cinema e todo o tipo de manifestações culturais, o Cinema São Jorge passou a ser o espaço da grande maioria das ante-estreias do Cinema Português.
O Arq. FERNANDO SILVA
O responsável pelo projecto do São Jorge, Arq. Fernando Silva, nasceu em Lisboa, a 5 de Janeiro de 1914, tendo frequentado arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, mas acabaria por terminar o curso no Porto, em 1944, já com 30 anos e com obra feita na arquitectura nacional.
Depois de vários projectos em conjunto com o Arq. Rodrigues Lima (Cadeias Civis), passou a assinar em nome próprio, e, em 1943 recebeu o primeiro dos quatro Prémios Valmor que ganhou ao longo da sua carreira.
O nome do Arq. Fernando Silva ficou também associado ao Centro Comercial do Bairro de Alvalade (que projectou com Faria da Costa), e a vários edifícios de escritórios, nomeadamente os da Shell, La Equitativa e Philips.
Da sua autoria são ainda as três torres que compõem os Edifícios Avis e o conjunto urbano da Portela.
O SÃO JORGE DE AGORA
Actualmente o São Jorge é constituído por três espaços, a saber:
Sala Manoel de Oliveira
Corresponde ao maior espaço de projecção, o qual é constituído por uma 1ª plateia com 160 lugares, uma 2ª plateia com 364 lugares e um balcão com a capacidade para 324 espectadores.
Tem um palco com uma largura, parede a parede, de 24,50m e uma profundidade, ao centro, de 9.40m.
É usada para as mais diversas actividades de índole cultural, apresentando, na vertente Cinema, sistema de projecção 35mm (película) e projecção digital (Barco) com servidor Doremi, sendo o sistema de som DTS, Dolby SR e Dolby A.
Sala 2
Largura parede a parede de 7.30m, com altura do chão ao tecto, junto ao palco de 4,80m, sendo a profundidade do palco de 4.40m.
A sala está dividida em quatro patamares, nos quais se podem sentar 100 espectadores, ou, caso se opte pela dispensa de cadeiras o espaço possibilita a presença de 250 pessoas.
Está equipada com um projector de vídeo (Panasonic), uma tela formato 4X3 para projecção frontal ou retro-projecção (sistema DLP).
Dadas as suas características é usada para projecção de filmes de culto, conferências e todo o tipo de actividades culturais que carecem dum espaço com as dimensões apresentadas.
Sala 3
Com vocação para visionamento de filmes de 35mm, com som DTS, Dolby A e Dolby SR, assim como visionamento de suportes vídeo, dispondo para o efeito de um projector Panasonic (DLP).
A sua capacidade é de 181 lugares
IMÓVEL DE INTERESSE PÚBLICO
De planta rectangular, o frontispício possui dois pisos, cave e sub cave, articulados por uma forte presença do elemento horizontal, ainda que o primeiro registo se destaque pela presença de uma escadaria de acesso à entrada principal do cinema, sendo a fachada rasgada por cinco vitrinas executadas com arcos metálicos, a par de duas portas recuadas, também elas coroadas por palas.
Quanto ao segundo registo, ele ostenta uma placa em consola para afixação dos cartazes, sendo toda a fachada rasgada lateralmente por janelas com pinázios contínuos e encimada por platibanda composta de placa estreita (de igual modo em betão) e suportada por mísulas.
Mas, a aparência de monólito conferida pela fachada principal é quebrada ao nível do segundo registo, designadamente através dos pilares e das janelas em fresta que ostenta, bem como dos dois óculos, ao mesmo tempo que pela sua finalização em cornija arquitravada.
Por tal razão aguarda por parte do IPPAR (Instituto Português do Património ARquitectónico) a classificação de Imóvel de Interesse Público.