2018-08-20
Texto: Carlos A Henriques
Introdução
Escrever a Biografia do cineasta António da Cunha Telles não é tarefa fácil caso se pretenda ser fiel à história de um Homem que dedicou a sua vida, fundamentalmente, ao Cinema português em particular, mas de um modo generalizado à postura e evolução do Cinema no mundo.
Contudo, o que a direcção da Colorize Media pretende fazer é apenas e só uma pequena nota da existência de uma figura ímpar para o Cinema nas várias vertentes como Argumentista, Produtor, Realizador, Distribuidor e Exibidor, para além da vertente do negócio baseado no aluguer de equipamentos, daí esta peça não poder ser apelidada de Biografia mas apenas e só de Ligeiras Notas Biográficas.
António da Cunha Telles é mais conhecido como Produtor de Cinema, mas, no seu íntimo, é mais Realizador do que Produtor, tal como costuma dizer aos seus amigos mais íntimos.
Como nos conhecemos
Estavamos em 1988/9 e recebo no meu gabinete, no 12º andar do edifício RTP, uma chamada telefónica de António da Cunha Telles a convidar-me para um almoço/trabalho, no qual se ia discutir com um técnico alemão as virtualidades de um sistema proposto pela empresa portuguesa Sonofilme (já extinta), na pessoa do Sr. Peixoto, um sistema baseado numa câmara vídeo acoplada ao suporte da câmara que ia captar as cenas do filme (vídeo assist), no qual era possível através do time code deste estabelecer uma associação fidedigna com os edge numbers da película.
Há a referir o facto de à data António da Cunha Telles não me conhecer pessoalmente, mas ter de mim apenas uma referência dada pelo proponente do sistema, em cuja casa, em Paço de Arcos, foi feita a citada demonstração.
A empatia foi de imediato partilhada por ambos ao fim de pouca palavras, a qual se traduziu numa amizade que perdura ao longo dos tempos, havendo da minha parte esta “obrigação” do cumprimento de uma homenagem pública a um Homem a quem o Cinema português e o País muito devem.
António da Cunha Telles em rodagem
Origens e percurso de vida
Corria o ano de 1935 e eis que a 26 de Fevereiro nasce no Funchal (Madeira) aquele cujo nome foi atribuído pelos pais, respectivamente Alexandre da Cunha Telles e Anne Kirstine Vera Berangere Cohen, de António Alexandre Cohen da Cunha Telles. Casou com Reneé Gagnon de cujo enlace nasceu uma filha, Pandora Gagnon da Cunha Telles, a qual foi sua sócia na empresa produtora Filmes de Fundo, sendo actualmente sócia da produtora Ukbar Filmes.
Desde muito novo começou a fazer filmes numa velha máquina de 9,5mm que comprou, com a ajuda da mãe, por 100 Escudos.
Como na Madeira não havia laboratório para revelar os seus filmes, assim como a ligação com o Continente apenas se fazia por barco, optou pela revelação doméstica recorrendo a uma espécie de “banheira” e a artefactos associados, sendo a montagem feita a olho, ou seja, sem recurso a uma moviola.
Após conclusão do Curso Geral dos Liceus, antigo 7º ano, no Funchal, ruma a Lisboa e inscreve-se na Faculdade de Medicina de Lisboa, passando a participar em tertúlias onde se discutia Cinema e respectiva actividade, tendo como consequência o abandono do curso que o tinha, em princípio, trazido a Lisboa.
Em 1956 ruma a Paris e inscreve-se no IDHEC (Institut Des Hautes Études Cinématographiques), Escola marcante para toda uma geração de cineastas portugueses da época, onde se forma na arte de bem realizar em Cinema, curso que completou em 1961. No mesmo período frequentou, também, o IF (Institut de Filmologie) na Faculté de Lettres de l’Université de Paris (Sorborne), assim como a l’École Normale Supérieur de St. Cloud.
Na posse de conhecimentos pouco comuns em Portugal, é convidado para dirigir o Jornal Imagens de Portugal, assim como foi nomeado responsável por toda a actividade cinematográfica levada a efeito pela Direcção-Geral do Ensino Primário onde realiza a sua primeira obra com o documentário “Os Transportes”.
Com o objectivo de transmitir os seus conhecimentos sobre Cinema cria, em 1962, o EUCE (Estudio Universitário de Cinema Experimental), no qual, à imagem da Rádio Universidade, cria uma série de Cursos de Formação, acção jamais levada a cabo no País com estas características, com resultados excelentes para a actividade que se pretendia, então, incentivar.
Dada a sua relação “umbilical” com o IDHEC, estabelece com este um protocolo com o qual os alunos que concluíssem, com sucesso, o curso da EUCE, entravam directamente para o curso de Paris sem necessidade de fazer qualquer exame de admissão como aconteceu, por exemplo, com a Realizadora Teresa Olga.
Lança-se na produção de filmes de longa metragem criando a “Produções Cunha Telles”, sendo o primeiro, de uma série de 13, o filme de Paulo Rocha “Os Verdes Anos” (1963), no qual toda a equipa era constituída por novatos na 7ª Arte, como Fernando Matos Silva, ex-Aluno da EUCE, Elso Roque e outros tal como o próprio Realizador, sendo o único com experiência acentuada o Director de Fotografia, o francês Luc Mirot.
Filmagem “Os Verdes Anos” (1963)
Graças à sua acção foi uma boa âncora para uma série de jovens cineastas que então desabrocharam entre os quais Paulo Rocha (“Os Verdes Anos”-1963 e “Mudar de Vida”-1966), Fernando Lopes (Belarmino-1964), Manuel Guimarães (“O Crime da Aldeia Velha”-1964 e “O Trigo e o Joio”-1965), Manuel Faria de Almeida (“Catembe”-1965), Carlos Villardebó (“As Ilhas Encantadas”-1965) e António de Macedo (“Domingo à Tarde”-1966 e “Sete Balas Para Selma”-1967), dando um contributo ímpar ao chamado período do Cinema Novo Português, havendo quem o apelide de “o Pai do mesmo”. O “Neo-Realismo” italiano e a “Nouvelle Vague” francesa foram as suas fontes inspiradoras.
Em 1967, período de grandes dificuldades económicas para suportar as despesas resultantes na produção de filmes a carecerem apoio de bilheteira, que de facto não tinham, opta pela realização de doze jornais de actividades cinematográficas, o Cine-Almanaque, os quais passavam nas salas de Cinema durante a primeira parte de três, dado naquela época as sessões comportarem dois intervalos.
Há um aspecto muito relevante sobre a questão da proveniência do dinheiro para apoiar, nesta primeira fase de actividade, os treze filmes, cuja produção tiveram a sua chancela, ou seja, não teve o apoio de nenhuma organização, estatal ou privada, tendo empregue o seu próprio dinheiro, o qual a dado momento pura e simplesmente acabou.
O Cerco (Product Placement)
Lança-se, então, numa nova fase da sua carreira, a de Realizador de filmes de fundo, em 1970, com o filme “O Cerco”, tendo no casting Maria Cabral, Miguel Franco e Ruy de Carvalho, no qual é contada a história, a preto-e-branco, de uma jovem que perante o cerco familiar e nacional envereda por outros cercos, aliás como o próprio Produtor/Realizadordo filme, pois lançou-se nesta “aventura” sem dinheiro, mas graças à sua estratégia de aplicar o chamado product placement no seu filme, pela primeira vez usado em filmes portugueses, arrecadou algumas verbas que lhe permitiram pôr em andamento a máquina, isto para além da sociedade estabelecida com o Eng. José Gil, dono dos Laboratórios Ulisseia Filmes onde o filme foi revelado e montado.
Como meio de concretização do filme recorreu a película 35mm não utilizada (restos), já fora de prazo de validade, dos filmes “Verdes Anos” (1964) e “Mudar de Vida” (1966), ambos do Realizador Paulo Rocha.
O Cerco (1970)
O filme, cuja montagem foi assumida, também, pelo Realizador, esteve presente no Festival de Cannes de 1970, na chamada Semana da Crítica, sendo esta considerada mais importante do que a própria selecção oficial, onde alcançou um enorme sucesso, assim como ganhou o Grande Prémiodo SEIT (1970), Prémios SEIT para Melhor Fotografia (Acácio de Almeida) e Melhor Actriz (Maria Cabral), Prémios Casa da Imprensa (Melhor Realizador e Melhor Actriz), Prémio dos Críticos da Revista Plateia para o Melhor Filme e Prémio Plateia, votação dos leitores, para Melhor Actriz.
A presença de “O Cerco” em Cannes teve como consequência imediata em Portugal a procura de bilhetes por parte daqueles que queriam, agora sim, fazer o respectivo visionamento, sendo esta uma difícil acção dado que as sessões esgotaram continuamente por um período de três meses, o que demonstrou um interesse superior por parte de um público divorciado do Cinema português.
As Empresas
A primeira empresa a "Produções Cunha Telles", fundada em 1962, tinha por objectivo criar condições e fornecer apoio às produções levadas a efeito com o arranque da actividade de António da Cunha Telles em Portugal.
Uma outra empresa, a “Animatógrafo”, fundada em1969, dedicava-se à produção e à distribuição de filmes devendo-se à sua acção a possibilidade de se poderem visionar filmes e Realizadores que jamais passariam nas nossas salas de Cinema, como, por exemplo, os realizados por Alain Tanner, Bernardo Bertolucci, Gilles Carle, Glauber Rocha, Jean Vigo, Miguel Littín, Marin Karmitz, Nagisa Ôshima ou Serguei Eisenstein, entre outros.
A empresa produtora de Cinema, a “Filmes de Fundo”, fundada em 1983, foi um outro marco na indústria cinematográfica portuguesa graças ao querer de António da Cunha Telles, através da qual foram produzidos grandes filmes tanto a nível nacional como na produção executiva de dezenas de filmes estrangeiros que tiveram Portugal como cenário em algumas das suas cenas.
Realizadores como António de Macedo, António-Pedro Vasconcelos, Edgar Pêra, Eduardo Geada, Fernando Lopes, Fonseca e Costa e Joaquim Leitão foram alguns que viram os seus trabalhos concretizados graças à acção da “Filmes de Fundo”.
Os Amigos do Vá-Vá
No cruzamento da Av. Dos Estados Unidos da América com a Av. De Roma, em Lisboa, situa-se um Café/Restaurante onde um Grupo de Amigos se encontrava regularmente para discutirem o Cinema e os processos de o concretizarem, tanto em termos técnicos como orçamentais, para além dos conteúdos e modos de escrita do mesmo.
Os encontros do Vá-Vá
Deste Grupo fizeram parte António da Cunha Telles, o mentor de toda aquela juventude, graças aos seus conhecimentos sobre a matéria, assim como o único com capacidade financeira para o necessário apoio a qualquer projecto que daquelas conversas resultassem, assim como Paulo Rocha, seu colega nos tempos do IDHEC e que vivia no prédio do Vá-Vá, tal como ainda hoje acontece com Lauro António, o animador Mário Neves com o seu atelier nas redondezas, Fernando Lopes cuja casa estava a escassos 100 metros, Faria de Almeida a viver por detrás da igreja da Av. Da Igreja, António de Macedo, Alfredo Tropa e muitos outros que entretanto se foram juntando.
Cargos Oficiais
Ao longo da sua carreira, em especial após a revolução do 25 e Abril, desempenhou, também, alguns lugares de destaque na gestão superior de importantes organismos nacionais como o de Presidente do Conselho de Administração e Administrador da Tobis Portuguesa (1978-1982), Administrador do IPC (Instituto Português de Cinema-1979) e Presidente Português do Motion Pictures Producers Association (1989-1993).
PRÉMIOS
ÓSCAR da Academia Americana de Cinema (AMPAS-1993)
Vários têm sido os filmes portugueses que concorrem ao longo dos anos ao ÓSCAR da Academia Americana de Artes Cinematográficas (AMPAS), sem que tenham tido qualquer sucesso. Contudo, António da Cunha Telles alcançou o almejado troféu obtendo o ÓSCAR do melhor filme estrangeiro, graças a uma co-produção da qual resultou o filme “Belle Epoque” (Fernando Trueba-1993).
O ÓSCAR de quem ama o Cinema
Prémio de Carreira do Festival de Cinema do Funchal
Na sua terra natal foi agraciado com o Prémio de Carreira por ocasião do Festival de Cinema do Funchal em 2005.
Filmografia
A enorme quantidade de filmes em que António da Cunha Tellesesteve envolvido é tal, mais de 200, levou-nos a optar por uma pequena lista dos que foram por nós visionados e que ficaram na nossa memória pelo que os mesmos representam ainda hoje, como o legado de alguém que “tem vivido a vida” pelo Cinema.
Na qualidade de Realizador:
“Os Transportes” (1962)
“O Cerco” (1970)
“Meus Amigos” (1974)
“As Armas e o Povo” (Colectivo-1975)
“Continuar a Viver” (1976)
“Vidas” (1984)
“Pandora” (1995)
“Kiss Me” (2004)
Mariza Cruz, José António Loureiro, Susana Felix e Philippe Mangin (Kiss Me)
Enquanto Produtor Principal/Associado/Executivo:
“Max Canta Três Canções” (Herlander Peyroteo-1962)
“Verdes Anos” (Paulo Rocha-1963)
“Vacances Portugaises/ Os Sorrisos do Destino” (Perre Kast-1963)
“La Peau Douce-Angústia” (François Truffaut-1964)
“Belarmino” (Fernando Lopes-1964)
“O Crime da Aldeia Velha” (Manuel Guimarães-1964)
“Le Triangle Circulaire (Pierre Kast-1964)
“Catembe” (Manuel Faria de Almeida-1965)
“O Trigo e o Joio” (Manuel Guimarães-1965)
“As Ilhas Encantadas” (Carlos Vilardebó-1965)
“Mudar de Vida” (Paulo Rocha-1966)
“Domingo à Tarde” (António de Macedo-1966)
“Sete Balas Para Selma” (António Macedo-1967)
“Continuar a Viver ou Os Índios da Meia-Praia (1977)
“Vidas” (António da Cunha Telles-1983)
“Paraíso Perdido” (Alberto Seixas Santos-1986)
“Os Flagelados do Vento Leste” (António Faria-1986/87)
“Balada da Praia dos Cães” (José Fonseca e Costa-1987)
“Rosa Negra” (Margarida Gil-1992)
“A Linha do Horizonte” (Fernando Lopes-1992)
“Belle Epoque/A Bela Época” (Fernando Trueba-1992)
“Aqui na Terra” (João Botelho-1993)
“Passagem Por Lisboa (Eduardo Geada-1994)
“A Filha de D’Artagnan” (Bertrand Tavernier-1994)
“Paraíso Perdido” (Alberto Seixas Santos-1995)
“Pandora” (António da Cunha Telles-1996)
“O Barbeiro da Sibéria” (Nikita Mikhalkov-1998)
“Fátima” (Fabrizio Costa-1997)
“Fintar o Destino” (Fernando Vendrell-1998)
“Jaime” (António-Pedro Vasconcelos-1999)
“Amote, Teresa” (Cristina Boavida e Ricardo Espírito Santo-2000)
“O Circulo Invisível” (Adam Brooks-2001)
“Os Imortais” (Co-Produtor-António-Pedro Vasconcelos-2003)
“Kiss Me” (António da Cunha Telles-2004)
“O Mistério da Estrada de Sintra” (Jorge Paixão da Costa-2007)
“A Corte do Norte (João Botelho-2008)
“Como desenhar Um Círculo Perfeito” (Marco Martins-2009)
“Quinze Pontos na Alma” (Vicente Alves do Ó-2009)
“Sweet Valentine” (Ema Luchini-2009)
“Amor Cego” (Paulo Filipe-2010)
“Rouge Brésil/Vermelho Brasil” (Série TV 2012/2013)
O Filme a Seu Dono
Em 2010 Álvaro Romão fez um Documentário, por nós vivamente recomendado, sobre a Vida e Obra de António da Cunha Telles, no qual e na primeira pessoa o protagonista nos conta a sua aventura de vida e a Arte de fazer bom Cinema.
Com Álvaro Romão na rodagem "Chamo-me António da Cunha Telles"
CONDECORAÇÃO
Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (2018)
António da Cunha Telles, Marcelo Rebelo de Sousa, Isabel Ruth e Lauro António (Cerimónia de Condecoração-2018)