Paixão pela Rádio e Televisão
2015-10-09
Texto: Carlos A Henriques
Fialho Gouveia, para o grande público, Zé Manel, para os familiares, ou, simplesmente, Zé Fialho, para os Amigos, foi na qualidade de Produtor e Apresentador, uma figura ímpar do audiovisual português, tanto na Rádio como na Televisão e até do espetáculo, pelo que escrever sobre a sua pessoa é para mim motivo de orgulho e felicidade, por, entre outras razões, ter vivido com ele alguns dos momentos mais marcantes da Televisão em Portugal, que o mesmo é dizer, os primeiros anos da RTP, o programa Zip-Zip, Revolução de Abril de 1974, a primeira transmissão a cores e os Jogos Sem Fronteiras, entre outros, pois como afirma a sua filha, a escritora Maria João Fialho Gouveia:
“Recordar o meu pai é celebrar a vida.”
Esta frase, com a qual estou 100% de acordo, está presente no seu Livro “Fialho Gouveia - Uma Biografia Sentimental”, o qual me serviu de guia e ajuda à visita a histórias que remontam ao início da década de 60 do século passado, em especial as datas, pois os acontecimentos e os locais jamais se apagarão.
Há Sempre Um Primeiro Encontro
O ano de 1963 foi para mim muito especial pois corresponde à minha entrada num mundo de encanto e magia, onde a electrónica de então, ainda na época das válvulas, fazia maravilhas aos olhos do pacato cidadão.
Estávamos em novembro e às 09H00 em ponto, após a subida da íngreme rampa que ligava a Alameda das Linhas de Torres, 44, aos estúdios do Lumiar da RTP, apresentei-me nos Serviços de Intendência com a papelada necessária para iniciar a minha atividade numa empresa que foi/é “minha” ao longo de 40 anos.
Ao atravessar o “Monte dos Vendavais”, designação carinhosa que dávamos ao famoso “Pátio do Lumiar”, local que ligava estrategicamente os vários serviços de apoio às emissões e onde entre umas valentes fumaças se punham em dia as novidades nas conversas entre colaboradores da empresa, os quais não eram mais do que um grande grupo de Amigos, eis que deparo, mesmo de frente, com aquela figura que conhecia dos distantes ecrãs. Era o Fialho Gouveia, em pessoa, e com o seu peculiar sorriso cumprimentou-me:
“Olá rapaz, bom dia!”
Nos dias que se seguiram foi a descoberta de outros nomes que à data deixaram de fazer parte do meu imaginário e passaram a estar incluídos na galeria de personalidades que moldaram o meu modo de olhar para o trabalho como algo pertencente à realização de qualquer ser humano e não aquela chatice de todos os dias se ter que ir para o serviço cumprir determinadas horas a troca de um salário.
Não querendo ser injusto destaco, de memória, alguns desses nomes como o Jorge Alves (Cartaz TV), António Lopes Ribeiro e o Maestro António Melo (Museu do Cinema), Capitão Baptista Rosa (Cartaz do Cinema), Artur Varatojo (Selecção Policial), Vasco Hogan Teves (Jornalista), Nuno Fradique (Realizador/Apresentador programas culturais), Fernando Frazão, Ruy Ferrão, Artur Ramos, Jorge Listopad, Oliveira e Costa e Arq. Herlânder Peyroteo (Realizadores), Maria de Lurdes Modesto (Culinária), Dr. Ramiro da Fonseca (Vida Sã em Corpo São), Padre António Ribeiro (O Dia do Senhor), Anthímio de Azevedo (Meteorologia), a Maria João e a Maria Aurora do programa Infantil, Artur Agostinho (Concursos), Eng. Sousa Veloso (TV Rural), os Apresentadores do Telejornal Manoel Caetano, Henrique Mendes e Carlos Cruz, o Maestro José Atalaya (Música erudita), Maria João Avilez (Condição Feminina), Joaquim Filipe Nogueira (Automobilismo), Júlio Isidro (Programa Juvenil), as locutoras de continuidade Isabel Wolmar, Maria Fernanda e Manuela Fonseca, o Jornalista Rui Romano (Presença do Ultramar) e a apresentadora Alice Cruz .
Origem e Ligações Familiares
Com o nome completo de batismo de José Manuel Bastos Fialho Gouveia, nasceu a 30 de abril de 1935 em Aldegalega (atual Montijo) o filho único de Álvaro Fialho Gouveia e Cesaltina Mendes Bastos Fialho Gouveia, tendo falecido a 2 de outubro de 2004 em Coimbra.
De um primeiro casamento, com Maria Helena Varela Santos (1960), teve um filho, Paulo Jorge (1960) e uma filha, Maria João (1961), e, de um segundo casamento com Maria Beatriz Soares Araújo, um filho de nome José Eduardo (1978).
Estudou no Liceu D. João de Castro (Junqueira-Lisboa), denotando desde muito cedo um certo “jeito” para a palavra oral assim como para a escrita, tendo tido participação ativa num Jornal da sua área de residência, concretamente no Jornal de Cascais.
Mais tarde, já na Faculdade de Letras de Lisboa, cursou Filologia Românica, condição que lhe deu acesso à Rádio, através da Rádio Universidade, com prejuízo evidente do curso que pretendia tirar.
A Rádio
Foi o seu primeiro e grande amor profissional, que viria mais tarde a ser partilhado, só em parte, com a Televisão, concretamente a partir de 1957 com o arranque das emissões regulares da RTP, então já instalada em edifício próprio com a designação de estúdios do Lumiar.
Apesar do seu trabalho na Televisão lhe dar muito mais visibilidade nunca abandonou as ondas hertzianas radiofónicas, nas quais a sua voz viajou através das emissões da Rádio Universidade mesmo antes até do início das emissões de Televisão em Portugal.
Mais tarde trabalhou em várias estações de Rádio e em múltiplos programas cuja marca Fialho Gouveia perdurou para o futuro, com destaque especial para o “Diário do Ar”, com Paulo Cardoso e “PBX”, com Carlos Cruz, Joaquim Furtado, Paulo Morais, Adelino Gomes, entre outros, ambos na Rádio Renascença, assim como “Tempo Zip”, de início no Rádio Clube Português e mais tarde na RR.
A Rádio Universidade
Estamos em 1955, e, naquele tempo, a existência de qualquer tipo de escola onde se pudesse aprender Rádio, ou até praticar, era algo só ao alcance de alguns, os mais dotados para o meio, como aconteceu com Fialho Gouveia e a sua permanência na Rádio Universidade durante dois anos, sendo feitas as emissões reais entre as 19H00 e as 21H00 no espaço radioeléctrico atribuído à então Emissora Nacional.
Alfobre de grandes nomes da Rádio, como João David Nunes, Carlos Pinto Coelho, Luís Filipe Costa, Henrique Garcia, Adelino Gomes e muitos mais, a Rádio Universidade marcou uma época em que a arte e o prazer da palavra ultrapassava o desejo de se ter um emprego sólido e bem remunerado.
A RTP
A sua entrada como colaborador efetivo para a RTP deu-se entre 1956 e 1957, ou seja, no período transitório entre as emissões experimentais na Feira Popular de Lisboa (1956) e o arranque das emissões regulares a 7 de Março de 1957, com um ordenado mensal de 1.250 escudos, que o mesmo é dizer, o equivalente a 6,25€, isto sem a necessária adaptação monetária ao espaço temporal entretanto decorrido, com a categoria profissional de Locutor/Apresentador.
Naquele tempo (1959) o Telejornal não era apresentado por Jornalistas como acontece atualmente, mas sim por profissionais da palavra como aconteceu com Fialho Gouveia, Gomes Ferreira, Manoel Caetano, Arnaut Pombeiro, Arménio Duarte Silva, Paulo Cardoso, Henrique Mendes a que se juntou mais tarde, em 1962, Carlos Cruz, o seu grande Amigo sempre presente até ao dia da sua morte.
Na continuidade de emissão daqueles primeiros passos da Televisão pautava a voz e o sorriso de Maria Helena Varela Santos, com quem veio a casar-se em 1960.
A RTP abria, então, as suas emissões às 20H00 com o hino de estação, sendo o final das mesmas, impreterivelmente às 24H00, com imagens da bandeira portuguesa desfraldada ao sabor da melodia do hino nacional, pois o dia que então se iria iniciar carecia que a população fosse para a cama a horas não muito tardias e com serenidade de espírito de modo a estar pronta, pela manhã, para mais um dia de trabalho. Era a norma que vigorava à data no país e a RTP respeitava-a rigorosamente.
Outros tempos, pois nos dias que correm qualquer nova Estação de Televisão opta, à partida, por emissões de 24 horas diárias ao longo dos sete dias da semana, caso contrário vê o seu futuro imediato seriamente comprometido.
O Rádio Clube Português
Considerada como a estação de Rádio privada mais relevante antes do 25 de abril de 1974, o Rádio Clube Português (RCP) contou nos seus quadros e programas com os nomes mais sonantes de então, figurando entre os melhores o nome de Fialho Gouveia.
Um dos programas de enorme sucesso da estação foi precisamente o PBX, que durou cerca de um ano, de 1967 a 1968, no qual foi introduzido o conceito de diretos ou falsos diretos de rua, havendo o tratamento aprofundado do tema do dia que podia ser “a florista, o varredor, o barbeiro ou o homem das castanhas”.
O programa tinha na retaguarda a produção dos Parodiantes de Lisboa, contando com a produção executiva e apresentação respetivamente de Fialho Gouveia e Carlos Cruz os quais lideravam uma equipa maravilha dos quais se destacavam João Paulo Guerra, Paulo Morais e Adelino Gomes.
A emissão, de segunda a sexta-feira, das 00H00 às 02H00, era a companhia ideal para quem tinha que trabalhar à noite, na qual nos incluímos na qualidade de estudante, dada a dinâmica que a equipa incutia no programa, a música, as entrevistas, as reportagens, ou seja, a verdadeira companhia.
Ficou célebre a emissão em que os autores simularam a invasão do território continental por uma praga de pirilampos. Dado que o programa era transmitido durante a noite, o suposto efeito visual era algo de transcendente, havendo pessoas que afirmavam convictamente às várias equipas de reportagem terem visto os luminosos insectos a passar sobre as suas cabeças.
Passado um ano sobre o arranque das emissões desta experiência radiofónica a equipa coordenadora foi confrontada com a necessidade de redução de custos, dado que comercialmente, segundo os patrões, os Parodiantes de Lisboa, o programa não atingia os objectivos para que tinha sido criado, ou seja, não dava lucro, devendo-se tal facto ao excesso de reportagens do exterior, assim como à volumosa equipa que o constituía.
Perante a realidade dos números e a relutância na redução de capacidade do programa, Fialho Gouveia e Carlos Cruz demitiram-se, e em boa hora o fizeram dado que logo de seguida, e em casa de Raul Solnado, surgiu a ideia de se fazer um programa dinâmico para Televisão.
Estavam lançadas as pedras para o nascimento de um dos mais marcantes programas na história da Televisão em Portugal, que o mesmo é dizer o “Zip-Zip”.
Programa Zip-Zip
Corre o ano de 1969 e vive-se ainda um pouco da esperança da chamada “Primavera Marcelista”, que o mesmo é dizer, após a transferência de poder da parte do Dr. Oliveira Salazar para o Prof. Marcelo Caetano, criou-se uma onda que levava os bem intencionados a acreditar ser possível a mudança de regime sem que houvesse derramamento de sangue.
O Maio de 1968 em França deu uma ajudinha e tudo fazia crer que era agora que o regime cedia a uma vivência democrática, ao ponto de o mesmo ter autorizado a três “doidos”, de então, produzirem e apresentarem um programa de Televisão que rompia com todo o tipo até então emitido.
Estou a referir-me ao Zé Fialho, ao Raul Solnado e ao Carlos Cruz, sendo o programa denominado por Zip-Zip. A realização desta série de programas foi entregue a uma outra grande figura da RTP e do audiovisual português, ou seja, ao amigo comum Luís Andrade, tendo a primeira emissão sido feita a 24 de maio de 1969 e a última a 29 de dezembro do mesmo ano (36 programas).
Era um novo formato de Televisão, um talk show, feito fora dos tradicionais estúdios, neste caso no Teatro Villaret, gravado ao sábado à tarde e transmitido à segunda-feira da semana seguinte em prime time, e que recorria à presença de público ao vivo, o qual era parte integrante no desenvolvimento de cada programa, compreendendo este entrevistas a notáveis portugueses como, por exemplo, o Mestre Almada Negreiros e o Prof. Agostinho da Silva, ou a estrangeiros, por exemplo, Vinicius de Morais e Caetano Veloso, e ainda apontamentos musicais de grandes figuras consagradas ou que despertavam então para a Música, Teatro, Cinema e Televisão como aconteceu, por exemplo, com o maestro António Vitorino D’Almeida e Carlos Alberto Moniz, entre dezenas de outros.
Havia, em todos os programas, uma entrevista humorística em que participavam os produtores do programa, sendo a condução das perguntas da responsabilidade de Fialho Gouveia e Carlos Cruz e o entrevistado o incomparável humorista Raul Solnado, o qual criou figuras que perduraram no tempo como o célebre Mr. Fritzs, o “inventor” das batatas fritas.
O impacto do programa foi de tal ordem que os teatros passaram a fechar portas à segunda-feira por falta de público, procedimento que se mantém até aos dias de hoje para folga da companhia, assim como os bilhetes de cinema apresentavam um custo muito reduzido na esperança de, assim, atraírem alguns espetadores às salas.
É que o País parava, mesmo, à segunda-feira depois do Telejornal!
À data, para além do 2º Canal da RTP, não havia qualquer outra “concorrência”, pelo que a necessidade de aferição de audiências não existia, razão para as empresas da especialidade ainda não se terem instalado em Portugal.
Contudo, a equipa tinha a preocupação de saber do agrado do programa, tendo como termo de comparação os programas anteriores, pelo que Fialho Gouveia teve uma ideia brilhante que consistia em ligar no final da emissão do programa para a Companhia das Águas para saber se o volume de descargas de água tinha sido maior ou menor durante o intervalo do programa. Caso este fosse de grande agrado as descargas durante o intervalo cresciam, pois ninguém arredava pé de fronte do televisor enquanto o Zip-Zip estivesse no “ar”.
O mascote do programa era um boneco de feltro, criação de Manuel Pires, o mesmo que criou as imagens do indicativo, o qual à data era Planificador Gráfico tendo passado a Realizador com a introdução na RTP da Paint Box (sistema de grafismo electrónico da empresa inglesa Quantel) no início dos anos 80’. No final de cada atuação o convidado era agraciado com um Zip, sendo este um prémio muito desejado por toda a comunidade que fazia do espetáculo, das artes e da palavra a sua vida.
Sendo, à data, Presidente do Conselho de Administração da RTP o Dr. Ramiro Valadão, a aprovação das emissões do Zip-Zip deve-se à sua ação, dado não ser nada fácil naqueles tempos a aceitação de um programa com aquelas características, tendo-se generalizado a expressão de sua autoria “um Zip de dois/três dias” para quem era castigado por erro cometido no exercício das suas funções.
Após vários problemas de ordem logística com o programa, leia-se “incómodo” do regime, o mesmo viu o seu termo a curto prazo, ou seja, nove meses após o seu arranque, tendo os produtores criado no Rádio Clube Português um programa diário, de segunda a sexta-feira, com a designação “Tempo ZIP”, contudo o seu impacto em nada teve a ver com o obtido na Televisão.
O 25 de Abril
O grito de liberdade dado pela Rádio através da leitura de comunicados do Movimento das Forças Armadas pelo Jornalista Joaquim Furtado ao longo da madrugada do dia 25 de Abril de 1974, teve continuidade nas emissões de Televisão que se seguiram, sendo seus protagonistas na apresentação, respectivamente, Fialho Gouveia e Fernando Balsinha.
Aquela imagem no estúdio A da RTP em que aparece, de pé do lado direito do ecrã, Fialho Gouveia a apresentar os membros da Junta de Salvação Nacional, então presidida pelo General António de Spínola, ficou para sempre gravada na memória de todos os portugueses que assistiam através da Televisão ao desenrolar da Revolução.
Com os tempos de mudança, Fialho Gouveia fez parte de uma Comissão, juntamente com Maria Elisa Domingues, a qual propôs uma separação total dos chamados Locutores entre os temas respeitantes à Informação e os restantes géneros de programas. Com a aprovação superior deste princípio, passou à condição de Jornalista, o que abria a possibilidade de intervenção nos textos que lia no Telejornal.
Contudo, passados três meses com o estatuto de Jornalista, abdica do cargo a favor da sua condição de Apresentador.
O Seu Benfica
O bater clubístico do seu coração tendeu sempre para o lado da área da Luz, sendo o que se pode chamar de “um adepto ferrenho” do SLB. Tal convicção conduziu-o ao desempenho oficial de funções no SLB como Secretário da Assembleia Geral, assim como foi a voz que se fez ouvir por todo o estádio na cerimónia de inauguração do atual Estádio da Luz, levando às lágrimas muitos dos presentes que enchiam o estádio.
Para sublinhar o seu benfiquismo a filha, Maria João, dedicou um capítulo do seu livro “Fialho Gouveia - Uma Biografia Sentimental”, com o título “O Coração Encarnado” com testemunho do grande Eusébio e de outras figuras do Benfica, pois segundo se pode ler no mesmo:
“O Benfica era uma das paixões da vida dele. Ver um jogo em casa era um espetáculo e eu só podia ser benfiquista”
De acordo com José Augusto, grande figura de outros tempos do Clube da Luz:
“Conhecemo-nos quando cheguei ao Benfica e tivemos aqueles anos deslumbrantes na Europa, onde ele nos acompanhava”
E conclui:
“O José Fialho era um homem bom”
Outros Programas, Outros Domínios
A enumeração de todos os programas em que Fialho Gouveia participou é não só fastidiosa para quem lê esta minibiografia como tarefa difícil para quem a elabora, dada a grande quantidade em que participou, pelo que optámos por apresentar apenas os de maior impacto como “A Arca de Noé”, “A Filha da Cornélia”, “A Prata da Casa”, “A Visita da Cornélia”, “Com Pés e Cabeça”, “Entre Famílias”, “E o Resto São Cantigas”, “O Gesto É Tudo”, “Par ou Ímpar”, “Vamos Caçar Mentiras”, assim como participou como apresentador dos primeiros “Jogos Sem Fronteiras” e de vários “Festivais RTP da Canção”.
Fontes: “História da Televisão em Portugal” (Vasco H. Teves – Editorial TV Guia-1998), “Fialho Gouveia - Uma Biografia Sentimental” (Maria João Fialho Gouveia – Vogais Editora-2013) e memória do Autor.